Fitava a sua cara angelical por entre um sorriso discreto mas que era nela tão puro e transparente quando representava contentamento e felicidade. Era o seu quarto, o seu pequeno mundo.
Sempre me senti mais confortável com a ideia de um espaço que não fosse o meu, ou totalmente meu, ou desde sempre meu, que não fosse criado por mim.
Na verdade imaginava como seria um quarto diferente ou caso eu tivesse a capacidade para fazer a mudança desde dentro ( “so I start a revolution from my bed”) que não o tivesse que o olhar com os meus olhos. Que conseguisse reflectir algo em mim, que tivesse reflectido alguns dos meus gostos, um pouco do que sou.
Os quartos devem ser os locais mais íntimos, mais pessoais, é neles que sozinhos à noite nos confessamos e confrontamos... diante daquelas paredes ficam os fantasmas que nos perseguem e da janela vemos o sol a nascer lá fora enquanto os nossos sonhos se desvanecem ao acordar e outros se vão criando e projectando.
É um local como que “sagrado”, num único local se depositam tantos anseios, tantos receios, tantos momentos e memórias todos acumulados nesse pequeno espaço… engraçado…ao mesmo tempo quando olho para ele apenas vejo uma pequena clausura de memórias distribuídas de forma desordenada, as paredes parece que me cercam, o espaço e o ar é por vezes sufocante… sinto-o como um reflexo do meu pequeno caos interno.
Não reflecte o meu lado mais solar (talvez porque nunca tenha sido muito dedicado a ele), os meus gostos, interesses, sonhos, não me capta totalmente, a minha essência… apenas demonstra uma parte de mim próprio que se entrega e não consegue mudar pequenas coisas, nem que seja o seu próprio quarto.
Queria viajar para outro quarto, mas ao mesmo tempo o saber que aquela cama é só minha, o saber que dentro daquele espaço desordenado e caótico apesar de tudo só eu me via a mim próprio e não tinha que partilhar esse espaço. Fazia-me sentir confortável no desconforto, mesmo naquelas inúmeras horas em que o tenho que confrontar…Mesmo evitando esse momento em que nele me vejo só e tenho que adormecer.
Apesar desse comodismo, ele nunca me fez sentir verdadeiramente tranquilo, feliz nem me ajudou a adormecer…Talvez no inicio…Como uma relação…Se calhar ele foi-me conhecendo e eu a ele e depois fomo-nos perdendo um do outro e afastando progressivamente…Tal como a relação com uma planta, se calhar deixei de o regar e ele foi murchando e assim deixei de tentar lutar por ele por sentir que ele também nada fazia por mim. Muitas relações degradam-se assim…Umas acabam, outras vivem acabadas numa continuidade aparente.
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Talvez por isto, eu amava todos os pequenos pedaços do seu quarto…todos os cantos dele…Pelo facto de não me ver a mim nele, apesar de me ver a viver nele com ela…Mas isso era diferente. .. Nos primeiros tempos, nas primeiras vezes que nele entrei era como conhecer alguém… Encantava-me…Apaixonava-me e ao mesmo tempo assustava-me….
Reparava em todos os seus adereços, em todos os seus pormenores, estudava-o minuciosamente mas ao mesmo tempo sentia-me desconfortável como se ele também me observasse a mim…
Depois com a confiança, com o tempo era aonde melhor me sentia… Era o meu oásis. Retirava de mim toda a dor ou tristeza, como que me alimentava e satisfazia de sonhos e desejos que nunca outro local seria capaz de o fazer…
Lá encontrara a paz, sentia-me em paz comigo próprio, o machado de guerra estava enterrado, não era mais necessário estar em posição de defesa. Um local que me fazia sentir em paz comigo mesmo por nele não me(re) ver… Talvez porque nele a via em todo o lado… Isso sem dúvida era o que o tornava tão especial… Desde as cortinas coloridas, aos livros que ela gostava desde miúda, as suas recordações, todas as fotos lembrando momentos, as suas recordações, tudo aquilo que de alguma forma a havia marcado e ela guardara como um pequeno tesouro. Lá desde a essas recordações até ao odor dela se sentir por todo o quarto, ali parecia que a cama era mais macia, o ar mais leve, naquele espaço os silêncios eram belos… não constrangedores e de dor… eram simplesmente calmos e belos… como se fosse simples conseguir algo assim…
Vê-la nos livros, nas fotografias de menina e ver todo o seu crescimento, imaginar tudo o que ela ali sonhou, os momentos em que ali se fechou para se proteger do mundo, para pensar, para descansar, para fugir… Era engraçado… Chega a uma certa altura em que já tinha visto todas as fotografias milhares de vezes, mas sempre as fixava… Era tão linda desde o dia 1… Acho que me teria apaixonado por ela em todas as fases da sua vida… E não conseguia parar de pensar nisso, como gostaria de a ter conhecido antes, como daria tanto do que vi e conheci para ter a hipótese de ter estado com ela em todos aqueles momentos anteriores, em viajar no tempo e conhecê-la, apaixonar-me por ela em todas as fases da sua vida, mesmo aquelas em que ela achava não ser as melhores ou as que achava mais desinteressante…eu era capaz de apostar que eu seria aquele rapaz que a iria abordar e ia ver aquela beleza extraordinária que via nesse momento. Independentemente das mudanças exteriores que ele tivesse ou não.
Gostava de sentir que eu era importante, que o facto daquele espaço tão precioso para ela me ter sido dado a conhecer…ela ter aberto as portas do seu refúgio de sempre para mim, fazia-me sentir especial…
Ali ela era mais ela própria. A sua confiança e desenvoltura era outra, era capaz de se mostrar e de ser mais do que o era noutro qualquer local rodeada de outras pessoas. Sentia-se como uma princesa no seu castelo, ali sentia-se protegida e capaz de simplesmente não se preocupar com o mundo lá fora… sentia-se mais forte, mais segura de si e ao mesmo tempo isso fazia com que ela soubesse que ali podia se mostrar também mais vulnerável…que ali não tinha mal..era o seu mundinho e deixara-me fazer parte dele…. Era como se vivêssemos numa pequena bolha e nada nem ninguém podia ali entrar, só nós conseguíamos ver e sentir aquele mundo.
Nada era mais relaxante para mim… ali o sono aparecia com naturalidade, os fantasmas não conseguiam entrar, …. Todos os momentos ali vividos eram o mais próximo de estar a sonhar que se podia estar estando acordado… Era muito ténue a diferença entre o sonho e a realidade nesse espaço… tanto que hoje não consigo diferenciar bem o que era sonho puro ou realidade que parecia um sonho…
Tratava-se de um local mágico, pois ali sentia-se de forma arrebatada tudo, respirava-se poesia por todos os cantos, ali sentia-me completo… Aquele local tinha a capacidade de me tirar o enorme peso que carregava no peito, qualquer tipo de dor ou ressentimento ou preocupação… Ali sentia que podia de facto descansar.
Nada era mais belo e maravilhoso do que sentir os seus lábios húmidos, o seu beijo antes de adormecer, as luzes apagadas e sentir o seu corpo colado ao meu até adormecer. Ali nada era mais sexy que a ver… nua. Totalmente despida, não falo apenas de roupa, ali ela despia-se de tudo o que carregava também para o mundo exterior…ali também ela se sentia mais leve., ali ela podia retirar a armadura que erguia para o mundo…Nunca a vi com tanta claridade como nesses momentos.
Por vezes espantava-se como eu era capaz de me apaixonar e adorar tudo no seu corpo e como realmente me fascinava a sua beleza…como era genuína a minha admiração…Ao ponto de a intimidar sentir que alguém a via assim… Assustava-a que me tivesse enganado, achava que era impossível alguém a ver como eu a via, sem olhar para ela, vê-la de facto… Comigo se calhar sentia-se mais despida do que nunca e assustava-a estar assim e sentir que comigo ela podia estar totalmente despida sem juízos, recriminações… eu simplesmente admirava tudo. Ficava mais especado e colado nela que em qualquer exposição de arte que pudesse ir…Não havia quadro ou obra mais bela que eu pudesse contemplar, com a diferença que aquela estava ali diante de mim com o seu olhar meio que envergonhado desejando que aquele meu olhar nunca perdesse aquele brilho que tanto a fazia sorrir e sentir especial….Eu também não o queria perder.
Nada me fazia sentir assim… Eu era capaz de admirá-la durante horas…totalmente calado, vê-la dormir ou até mesmo no dia a dia… Da mesma maneira que era capaz de estar horas a ouvir a sua voz, e era capaz de estar horas a falar-lhe de tudo e de nada, era capaz de estar em silêncio com ela….e é muito difícil conseguir-se isso com alguém…
Assustava-lhe pensar como um pessoa tão instável e insegura de si própria e da sua forma de pensar ou sentir podia passar tanta certeza com aquele olhar…Como conseguia passar de forma tão transparente através do meu olhar um sentimento tão forte e intenso por ela sem necessitar de o verbalizar.
Saber que o meu olhar ao vê-la mudava… e era mais genuíno, apaixonante e interessante do que qualquer palavra que lhe poderia dizer que já não houvesse sido dita a outro alguém ou que uma carta que seria mais uma para guardar entre outras que já haviam sido escritas….
Aquilo que eu sentia era mais forte e especial que tudo o que pudesse ter sido dito ou escrito antes… Nada mais puro e genuíno que o meu olhar para ela saber…
Não conseguia entender como para mim, aos meus olhos, ela podia ser tão perfeita estando longe de o ser na forma como se via… Ela adorava senti-lo, dava-lhe uma segurança e conforto o meu olhar…mas ao mesmo tempo assustava como pelos meus olhos ela se podia ver tão perfeita como nunca imaginou poder ser para alguém… Não a censuro… Se eu conhecesse alguém que me olhasse como eu a olhava eu também ficaria assustado…assustado se alguém tivesse as reacções químicas, físicas e emocionais, alguém tivesse essa explosão interna sempre que me via como eu tinha com ela… Saber que podemos ter um efeito tão bom e arrebatador para alguém deve assustar.
Ela era mais bonita, mais interessante e mais perfeita do que qualquer outra exactamente por não o ser… Espantava-lhe como me apaixonava pelos seus defeitos e imperfeições e não apenas os tolerava… era por eles que a começava a amar, mais do que pelas qualidades que qualquer pessoa conseguia ver à vista desarmada.
O facto de ser real fazia-me amá-la, admirá-la… fazia com que ela fosse o mais próximo que pudesse existir da perfeição para mim… O ser ela, com tudo o que isso acarretava, com forças e fraquezas, simplesmente nada poderia ser mais perfeito do que o facto de ela ser assim…real.
Por vezes ficava incomodada com o meu olhar, pedia-me para não a fitar como eu fazia, deixava-a sem jeito o facto de sentir que observava todos os teus maneirismos, todas as suas expressões… Eu dizia-lhe que era impossível parar de olhar para ela… não conseguia…queria vê-la e conhecê-la mais que a qualquer pessoa no mundo. Queria fotografar na minha mente todas as suas expressões, quando estava feliz, assustada, sonhadora, a rir à gargalhada, a adormecer, a acordar, embaraçada, atrapalhada, eufórica, enraivecida, ternurenta…todas… Queria saber a sua história… Queria saber o que lhe interessava, porque lhe interessava, que sentia e a forma de ela sentir…Ela fascinava-me. Tudo nela me fascinava. Como um livro que nunca cansamos de ler ou um filme que vemos vezes sem conta e em todas as vezes encontramos algo totalmente novo e especial que antes não havíamos reparado mesmo já conhecendo os diálogos quase de cor…
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Era como tocar no céu e voltar saber que ao acordar era o seu corpo (tão perfeito ao meu toque que parecia que havia sido desenhado para mim) que poderia abraçar, seria os seus doces lábios que poderia beijar e saber que seria o seu lindo e ternurento rosto que veria ao acordar, a olhar para mim com o seu lindo sorriso a brilhar para mim, tal como o sol brilhava lá fora, só que aquele sorriso brilhava só para mim… Sentir que tinha aquela linda mulher ao meu lado e ao mesmo tempo aquela menina das fotografias na forma pura de sentir e sonhar comigo…calhava bem, porque eu também era apenas um homem a seu lado, a tentar a aprender a ser adulto mas que ainda tinha dentro de mim aquele miúdo meio tímido e assustado mas com uma enorme habilidade de sonhar… Já não éramos crianças…Cada um tinha as suas cicatrizes, mas ali, naquele espaço, isso perdia importância… Com ela ali do meu lado, conseguia adormecer tão bem, tão feliz e descansado sem me preocupar com o dia de amanhã como nunca o conseguira sozinho… Se calhar desde criança que não dormia assim, quando era ainda muito pequeno e os meus pais ficavam comigo até eu adormecer… Desde aí que nunca me havia sentido tão calmo, seguro, tranquilo… desde esse tempo que não me sentia tão em casa…
No seu quarto eu via os seus sorrisos a sua mágica presença na minha vida, por entre a cor das cortinas iluminadas pela luz do sol quando amanhecia… Sentia que era capaz de passar o dia inteiro sem sair da cama, não sentia nem fome nem sede, ela e a sua presença saciavam-me totalmente, só tinha olhos para ela e era com pena que saíamos dele…Adiávamos o momento ao máximo. Não precisava de mais nada. Tudo o que precisava estava ali naquele quarto. Ela e o seu local mágico iluminavam as minhas sombras, preenchiam-me e faziam com que eu não sentisse as minhas carências…
Era como se todos os meus medos e receios e tudo o que eu não gosto em mim deixasse de fazer sentido e todos os meus defeitos e falhas e tudo o que odeio em mim parecessem coisas tão aceitáveis e inócuas quando estava com ela…
Ela conseguia isso… Quando juntos brincávamos, nos riamos de todas as coisas mais insignificantes que víamos nas pessoas e nas situações… a capacidade de eu me rir dela e e ela de mim sem nunca nos sentirmos ridículos aos olhos um do outro… O tudo nunca parecia demais quando estávamos juntos. Nunca havia cansaço ou tempo a mais juntos…. Tudo parecia ter tanta lógica e bater tão certo quando estávamos juntos… Até para mim que sempre questionei e problematizei tudo… Juntos era como ter a resposta para todas as equações sem nunca de facto ter de me preocupar ou perder tempo a fazer os cálculos ou rever resultados para ter a certeza que estava correcta a solução… Era como um dom inato que alguém tem para escrever, para tocar piano ou cantar e não sabem explicar como conseguem fazer o que fazem e que não está ao alcance de todos, apenas lhes sai assim, de forma natural, faz sentido que assim seja e por assim fazem daquela forma e não de outra e sai algo tão perfeito sem se conseguir perceber como eles conseguem e outros não… Era assim com ela…
A magia não estava afinal no quarto, estava nela… Ou naquele pequeno espaço entre nós…