E eis que após o Beginners me ter espantado pela sua qualidade, me vejo outra vez obrigado a escrever sobre outro excelente filme, este superando as minhas expectativas e surpreendendo-me, uma vez que não parti para o filme com expectativas muito altas.
De Woody Allen espera-se sempre filmes com um humor muito próprio, muito da sua personalidade numa das personagens, mas o facto é que este seu périplo pela Europa nem sempre vinha sendo pautado pelo sucesso…Desde que deixou de filmar em Nova York, parece que ficava sempre aquém do que se esperava de um filme seu.
Outros motivos de desconfiança prendiam-se não com todo o elenco (Rachel McAdams, Kathy Bates, Marion Coutillard são nomes que não oferecem grande discussão), mas a atribuição da responsabilidade a Owen Wilson de fazer o papel principal , de basicamente ser a extensão de Woody Aleen no filme, de o representar, parecia-me um fardo muito pesado para um actor que tem tido uma carreira de altos e baixos (com uma recente tentativa de suícidio), mas que sempre se tem destacado por fazer papéis muito idênticos em filmes de comédia bastante duvidosos.
No entanto, Woody Allen e o próprio Owen arranjaram o registo certo para este filme. Owen trouxe aquele lado trapalhão de Woddy, trouxe aquela paixão e ingenuidade e acima de tudo um pessimismo sonhador que se pedia. Não foi um Larry David (no whatever Works), mas também era difícil superar esse registo, e convém não esquecer que aqui previa-se que representasse um Allen mais jovem.
O filme aborda um tema que pode ser algo denso e pesado como é a Nostalgia de uma forma astuta, inteligente, cheia de pormenores de grande qualidade, com o humor à Woody Allen perfeitamente aguçado, desbloqueando uma série de teias complexas através de um desfecho e uma mensagem simples que são perceptíveis logo no inicio do filme mas que nem por isso nos faz perder interesse pelo seu desenvolvimento.
O filme gira em torno da personagem de Owen Wilson, Gill Pender, um argumentista bem sucedido em Hollywood que faz uma viagem com a sua noiva e sogros a Paris, tudo isto enquanto vive numa crise de identidade e de confiança pois tenta escrever algo a sério( para ele o que ele faz no cinema é algo menor e sem substância), tenta escrever o seu 1º romance e espera que Paris uma cidade com a qual sempre sonhou o inspire…Cidade essa onde ele sempre sonhou viver, mas que por um motivo ou outro sempre se manteve preso à sua realidade e áquilo que lhe parecia mais palpável para o qual se conseguia safar bem. Mas Paris era uma referência para Gill.Uma cidade que acolheu nomes como Hemingway, Scott Fitzerald entre outros e que era vista como a cidade dos artistas, seria algo que talvez faria com que Gill conseguisse finalmente desembrulhar o romance e acima de todo dá-lo a conhecer. Sendo um pessimista apesar de bastante romântico relativamente ao que pretendia atingir, ele deposita na cidade e na sua magia as suas últimas esperanças antes de se comprometer com uma mulher fútil pseudo intelectual, que simplesmente prefere viver em Malibu e que não partilha nem apoia os devaneios literários de Gill nem acredita na forma como ele vê o Mundo.
Não consegue ver a magia de uma cidade à chuva como Gilll…Por exemplo. Pequenas grãos de areia que acabam por ser fundamentais, e aos quais Gill vai frchando os olhos e se vai deixando levar e com isso abdicando de todos os seus sonhos….. A sua noiva aproxima Gill do seu lado mais pessimista e conformista, de que se deveria cingir ao que tem por adquirido e não ousar por mais…Paris funciona como força catalisadora para alimentar o seu lado mais sonhador e criativo. A cidade apaixona-o e não pelos seus monumentos, pelas provas de vinho etc, apaixona-o pelos seus pormenores, pela poesia que se respira no ar.
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Nesta viagem não sendo suficiente a companhia dos seus sogros que também não são propriamente grandes amigos ou entusiastas da sua união com a filha, Gill tem ainda que lidar com um casal amigo da sua noiva. Um casal totalmente snob e representando mais uma vez a crítica social de Allen, sendo que a partir daí se desenvolvem uma série de actividades em conjunto onde o ex-namorado da sua futura esposa aproveita para se pavonear com toda a sua cultura e conhecimento, mesmo que para isso seja preciso ser indelicado por vezes até com Carla Brunni ( uma guia muito especial ) .
Farto de programas como provas de vinhos, visitas a museus etc etc, Gill um dia desmarca-se de uma saída para dançar ( sendo cada vez mais evidente que a sua presença e opiniões eram totalmente irrelevantes, principalmente para a sua noiva que admira muito mais a capacidade intelectual do marido da sua amiga do que propriamente as ideias bizarras do se noivo), e aproveita para passear sozinho pelas ruas de Paris à noite …
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Eis que a magia então acontece. Sentado, meio perdido e bastante alcoolizado nas escadas de uma igreja, quando escuta as doze badaladas, a magia acontece e vê um carro clássico dos anos 20 a aparecer com pessoas lá dentro a convidarem-no para se juntar à festa.
Aí é como se viajasse no tempo. Volta àquela que ele considerava a época dourada de Paris. Paris boémia, onde poetas, escritores, pintores, se juntavam e bebiam para lá da conta, trocavam ideias e em que a noite parecia nunca ter fim.
Este ritual começa a repetir-se todas as noites e Gill vê-se cada vez mais alheado do seu dia a dia real e à medida que viaja no tempo a inspiração parece fluir como nunca antes tinha sido capaz…, e cada vez mais preso a esse passado e a esse sentimento de nostalgia por uma época que para ele era mágica, e nesta altura podemos vê-lo a confraternizar com ídolos de sempre como Fitzgerald, Hemingway e outros grandes nomes como Dali, Picasso etc… Allen gere muito bem este tipo de encontros e acrescenta o humor certo e cria momentos bastante interessantes.
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Woody Allen neste filme arrisca mais do que o costume e dá-nos algo de isolado. Fantasia e magia no seu filme. O suficiente para que se consiga apreender aquilo que é para ele a nostalgia no bom e no mau e como é sentir-se fora de época. Como muitas pessoas já sentiram a necessidade ou desejo de terem nascido noutra época, sempre achando que aí seriam mais felizes e que as pessoas dessa época seriam mais felizes, quando no fundo isso é apenas uma fuga para não enfrentar o presente com a mesma paixão que se coloca nessa ilusão.
Essa desmontagem é feita através da personagem de Marion Cotillard pela qual Gill fica totalmente apaixonado. Ela própria promove uma viagem ao passado dentro do próprio passado, pois não via como Gill pudesse achar a era dourada a década de 20…para a personagem de Cotillard a sua época de sonho era a “belle époque”…
Isso funciona como o click que Gill necessitava para perceber. Em todas as épocas existiu nostalgia e insatisfação, em todas elas se falava do passado como tendo sido algo grandioso e mais esplendoroso do que viviam então…A nostalgia funciona como uma forma de protecção à falta de paixão e fantasia naquilo que colocamos de nós no nosso dia-a-dia na realidade que hoje vivemos.
E a conclusão de Allen é que isso deve não ser apagado mas canalizado para os dias de hoje…Não deixar os sonhos e a fantasia de lado, mas tentar fazer o melhor com o que temos do presente para a recriar e a reiventar ( numa perspectiva menos pessimista que a de whatever Works), uma perspectiva reconstrutiva.
Sabendo que independentemente da época é possível ainda sonhar e ser inspirado nas mais pequenas coisas…e que poderemos sempre encontrar alguém que saiba apreciar um belo passeio à chuva…que também seja capaz de captar e se apaixonar pela beleza de uma cidade à chuva…
“Nostalgia is denial - denial of the painful present... the name for this denial is golden age thinking - the erroneous notion that a different time period is better than the one ones living in - its a flaw in the romantic imagination of those people who find it difficult to cope with the present.”
Alguns críticos acham que Allen poderia ter explorado mais a beleza da cidade, afinal já que estava em Paris poderia ter conseguido captar ainda mais a beleza da cidade das Luzes…No entanto não me parece que esse tenha sido o objectivo de Allen e ainda bem. Já bastava o exemplo de Vicky em que Allen fez um filme quase sem sabor, limitando-se a criar um postal ilustrado como uma história pelo meio.
Depois desse flop, Allen demonstra uma tendência…faz um grande filme, ao seu velho estilo, depois deixa passar uns quantos até se preparar para atirar-nos com outro grande filme.
Neste seu périplo pela Europa ainda tinha ficado por demonstrar algo de refrescante, de surpreendente e isso só aconteceu com Match Point e também é um filme que não se centra em Londres como o paradigma de todo o filme.
Não obstante o nome do filme incluir o nome da cidade. “Midnight in Paris” nãoe pretende ser um hino a Paris nem uma homenagem ou sequer um filme sobre a cidade.
É mais um filme sobre nostalgia e imaginação. Por isso logo no inicio do filme, Woody Allen atira-nos com uma série de clichés e de lugares comuns de Paris, com todos os seus maiores monumentos e locais de passagem obrigatória. Filmados de dia. São bonitos, agradáveis, e é sem dúvida uma cidade a visitar…Mas não é isso que Allen quer demonstrar. Ele quer demonstrar uma Paris que não existe hoje em dia e que porventura nunca terá existido sequer. Allen tenta mostrar-nos o que ele vê quando fecha os olhos e pensa em Paris e não aquilo que Paris é na realidade. Ele será o 1º a admitir que mesmo a forma como ele retrata os anos 20 é inexacta e ele próprio brinca um pouco com isso ao longo do filme e na discussão final entre afinal qual era a era dourada da cidade, se a os anos 20 se a bélle époque se a renaissance…É Paris da imaginação de Allen, uma nostalgia sobre um local que nunca existiu a não ser no seu imaginário.
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Assim sendo, entrei na sala esperando ver mais um filme de Woody Allen e saí tendo visto um filme de Woody Allen. Não apenas mais um. Atrevo-me a dizer que não fazia algo tão bom desde Match Point, filme que ele próprio considera um dos seus filmes mais bem conseguidos. Descentrando-se da obrigação de pintar uma cidade no ecrã e centrando-se na história e nos temas, Allen oferece-nos algo novo e algo mais seu.
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A minha relação com os filmes do Woody Allen é estranha. De miúdo vi muito poucos. Não suportava nem suporto Woody Allen como actor. Não sei explicar, é algo que simplesmente me irrita. No entanto com o passar dos anos fui vendo alguma da sua obra e vejo que o que mais me irrita nele é que consigo ver o cromo, a personagem dele com todas as suas idiossincrasias em todos os filmes, cheio de manias, medos, paranóias, pessimismo, desencanto misturado com uma vertente bastante romântica e sonhadora e revejo-me em vários traços daquela personalidade totalmente ridícula em muitos traços quando vejo de fora. E como depois tenho que acabar por admitir que vejo muito de mim em vários aspectos, no fundo, no fundo, o cromo sou eu, é como se me admirasse de fora e o que vejo é o ridículo levado ao extremo em forma de caricatura.
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Nostalgia é um tema recorrente para mim. Várias vezes me imagino a viver noutra época, como seria os 60s, 80s, como seria ter vivido nos antes da grande depressão nos EUA, como seria ter vivido noutros séculos etc. Talvez por isso, em busca dessa chama e o fascínio pelo passado o vivido e o imaginado, ficcionado, sempre me interessei por história, e sou capaz de estar horas a ver bipography channel como antes também me deslumbrava com o history channel e sempre me apaixonei por personagens históricas e filmes que retratem outras épocas..Talvez por isso seja tão chato com os meus pais e familiares com quem tenho mais à vontade, sempre a perguntar pela época deles, o que faziam, o que liam, o que ouviam, o que pensavam, o que sentiam…
Paris nunca foi tanto a minha obsessão, mas vejo essa magia em Londres e também e impossível não passear perto da Torre de Londres e ao largo do Tamisa e não imaginar com seria a antiga Londres…Daí gostar tanto da cidade, por conseguir conservar o clássico sem esquecer de lhe juntar a modernidade. É como viajar no tempo sem sair do mesmo espaço…
O que Allen nos diz é que se vivêssemos nessas épocas provavelmente encontraríamos pessoas como nós, a pensarem no passado, insatisfeitas com o seu presente e a endeusarem uma época que não viveram nem conheceram mas que através de estímulos vários, foram criando uma imagem que pode ser mais ou menos apurada do que se passava nessa época e de como seria
viver nela…O que basicamente indica, que nós próprios nessa época não deixaríamos de nos sentir insatisfeitos. É algo que está relacionado com a personalidade de cada um e aquilo que outro visionário António Variações, descreveria de forma simples nas suas canções “ estou bem onde não estou, eu só quero ir para onde não vou”..no fundo é estar sempre além…ou aquém.
Um filme a não perder, é sem dúvida uma excelente viagem e algo diferente do que temos visto de Allen sem se perder o seu lado biográfico com que assina todas as suas obras, sendo esta uma daquelas que entram para a galeria de obras de excepção…
Só espero que isto não significa que a sua próxima aventura, desta vez em Roma, não signifique um flop como a de Barcelona…Que não continue esta alternância entre um grande filme e depois outros medianos…Seria um desperdício não ter uma boa história para um elenco de luxo formado por: Penelope Cruz, Jesse Eisenberg, Ellen Page e Roberto Begnini.
Até lá, “we will always have Paris…” ;)